terça-feira, 29 de abril de 2008

A CURVA DO RIO


Há muito tempo que desejo escrever-te esta carta, como se uma força oculta fosse falando cada vez mais alto dentro do meu peito, uma voz muda que vai ganhando força e subindo até á garganta, tudo arranhando pelo caminho, inevitável e consistente, como o curso de um rio.
Quando o nosso amor nasceu, vi-o correr muito depressa debaixo dos meus olhos e quis ir atrás dele. Perdi o meu tempo porque não percebi que era a unica que o seguia. Não te vi parado, do outro lado da margem, que se ia cavando cada vez mais larga e funda, impotente ao caudal, assustado com a minha determinação, tu que só somas certezas depois de se disssiparem todas as duvidas e que preferes sempre nao acreditar em ti e nos outros, ate que o tempo e a sorte te vençam.
Somos o avesso um do outro. Quando duvidas, páras, e eu sigo em frente. Quando tens medo, eu tenho vontade, quando sonhas, eu pego nos teus sonhos e torno-os realidade, quando te entristeces, fechas-te numa concha e eu choro para o mundo, quando não sabes o que queres, esperas e u escilho, quando alguem te empurra, tu foges e eu deixo-me ir.
Somos o avesso um do outro, iguais por fora, o contrario por dentro. Tu proteges-me, acalmas-me, ouves-me e ajudas-me a parar. Eu puxo por ti, sacudo-te e ajudo-te a avançar. Como duas metades teimosas, vivemos de costas voltadas um para o outro, eu sempre á espera que te vires e me abraces, e tu sempre á espera que a vida te traga um sinal, te aponte um caminho e escolha por ti o que não és capaz.
Sobram-me as palavras, ainda e sempre as palavras que correm pelo rio. Histórias, mensagens, crónicas, um livro, conversas, e mais histórias, porque as palavras são as unicas que nunca falham, que me alimentam os soinhos e sustentam os dias quando mais nada me rodeia para além do silencio e uma vaga ideia de espera, desbotada pelo cansaço e pelo tempo.
Nenhum rio corre duas vezes e o amor é um mistério em estado liquido que se pode solidificar numa relação quse perfeita ou evaporar-se com o tempo e a distância, chamando a ausência para o lugar do futuro. E quando o futuro é um lugar deivxado vazio, nada mais há a fazer senão voltar para trás e procurar, sem procurar, uma nova nascente.


quinta-feira, 17 de abril de 2008

MANIFESTO ANTI-BIGODE!

Que me perdoem muitos portugueses e alemães, mexicanos e eslavos, taxistas, empregados bancários e motoristas da Carris, futebolistas, vendedores, pequenos empresários, desconhecidos, conhecidos a até alguns amigos, mas sou completamente alérgica a bigodes. Acho um bigode uma coisa absolutamente sinistra. Um tufo de pêlos inútil e inestético. Uma protuberância capilar foleira e despropositada. Um adorno pouco higiénico e muito duvidoso. Um adereço patusco que desfeia a boca e desenfeita o nariz. Em suma, uma ideia infeliz.
O bigode consegue ser uma moda que está sempre fora de moda. É uma mania sem gosto, uma inutilidade sem sentido, um toque de diferença que pode tornar um homem (ou mulher) com cara de parvo num animal bigolhudo e um com cara de esperto numa cara de parvo. O bigode é feio, e mesmo muito bem cofiado e penteado dá um ar desalinhado.
Claro que há bigodes imponentes e até carismáticos, mas esses são excepção. Como o bigode é um apêndice absurdo, nunca deve andar sozinho. Ganhará seguramente alguma dignidade se for devidamente enquadrado numa barba, um bigode entregue a si mesmo pode fazer muitas asneiras, sem a presença imponente e dignificante de uma barba madura e ajuizada, bem semeada e bem cortada. Um bigode sem barba é como um casaco sem calças, umas botas sem meias ou um cabide sem cruzeta. Não serve para nada, não é bonito e não resulta.
Ao analisar a história identifiquei algumas figurinhas para verificar que o bigode anda mais na boca de pessoas pouco recomendáveis do que a digna barba, vejamos:
Hitler tinha bigode, Xanana Gusmão, barba. Estaline, bigode. Indiana Jones, barba. Estão a perceber onde é que eu quero chegar? Até Jesus na Terra usou barba e se algum apóstolo usou bigode foi de certeza o Judas. Salvador Dali, Cantinflas, Charlot são três bigodes de excepção. O primeiro porque era genial, o segundo porque era cómico e o terceiro porque era falso. Porém, o bigode é mesmo uma coisa pouco recomendável e não só fica mal aos homens como as mulheres, mesmo que se resuma a cinco pelitos louros imediatamente acima dos cantos da boca.
Abaixo o bigode, viva a cara lavada. Quanto a barbas, prefiro a do Pai Natal. E tu?

terça-feira, 15 de abril de 2008

FORMAS DE EXPRESSÃO!

A nossa língua é, por assim dizer, um bico-de-obra. De facto, nenhum país em que existem nomes de terras como Picheleiro, Casal Mil Homens, Venda das Raparigas, Vila Nova do Coito e muitas mais, tudo é de esperar…
Mas há pior. Como as expressões corriqueiras que, tal como pasta dentífrica, andam na boca de toda a gente. Como “dar uma volta ao bilhar grande” que pode querer dizer varias coisas, mas nenhuma correspondera com certeza a uma volta ao dito bilhar, seja ele grande ou pequeno.
Dar de frosques” ou, pior ainda, “pôr-se na alheta” também fazem parte da infindável lista de expressões vazias, parvas e absurdas que não querem dizer nada. Assim como “pôr-se nas horas” que quer dizer chegar muito depressa a um lugar. Nesse caso, porque é que não se diz “pôr-se nos minutos”? Faz pensar na clássica “caíram nos braços um do outro” onde braços, na maior parte deviam ser substituídos por pernas.
E depois, todas as expressões com o verbo PÔR conjugado quase sempre de forma reflexa dão que pensar. Trazem água no bico. E cá está outro! Bico! Porquê no bico? Seremos todos aves raras? Já “água na boca” tem a sua razão. Mas ter “a cabeça em água” é outro absurdo, porque significa um estado mental deplorável relacionado com cansaço e torpor, quando deveria querer dizer algo relacionado com mergulhar ou ir ao cabeleireiro. E quanto aos “burros na água”, parece-me que burros somos nós em não perceber que andar com os animais na água é uma coisa má, pois são imã espécie que até aprecia uma banhoca no charco.
Quanto aos “nervos em franja”, pergunto-me se o nosso sistema nervoso é passível de um corte de cabelo. E para os “cabelos em pé”, relembro a época Punk e os B 52’s, ou Maria Antonieta. Nada mais me ocorre, porque já vi muita gente apanhar muitos sustos, mas nunca verifiquei que isso lhes levantasse as raízes capilares.
Outra expressão que muito me enerva é o “vou andando”. Está bem, vai-se andando, mas para onde, como e porquê? Será a pé, de autocarro, de metro, de comboio, de trotineta, de avioneta ou de patins? “Vou andando” lembra a canção do Capuchinho Vermelho: “ pela estrada fora – eu vou bem sozinha – levar a merenda á minha avozinha etc., etc.… “ Se calhar somos todos Capuchinhos (embora a maioria vigente esteja já um bocado desbotada). Ir andando é uma tristeza. Não se vive triste nem contente. A vida é uma seca rotineira que vai andando, sem chegar a lado nenhum.

E por falar em andar, que é que foi o engraçadinho que inventou a expressão “dar corda aos sapatinhos” para dizer que se vai embora? Será que porque nos anos 80 floresceu a moda dos sapatos modelo carrinhos de choque?
Mas há outros equívocos como “levantar-se com o pé esquerdo”, o que para um canhoto é natural e até está certo. Tipo, Nuno Almeida, vá! O mesmo se dá com “acordar com os pés de fora”, que no verão é bastante agradável e não deixa ninguém mal disposto.
E também há o “estar a dar”. A dar o quê? Bofetadas? Brindes? Chocolates? Viagens ao México? Seats Ibizas? Num mundo em que ninguém dá nada a ninguém a não ser chatices e desgostos, o “estar a dar” é no mínimo absurdo. Assim como a variante negativista do “isto não está nada a dar”, que só é legítima para árvores de fruto e hortas.
Assim como quando se fala de uma relação que está “ a dar os seus frutos”. Quererá dizer que os descendentes terão cara de nabos, rabanetes ou melões?
E a propósito de fruta, não lhes digo a quem é que chamava um figo!

sábado, 12 de abril de 2008

NÃO GOSTO!

Não gosto! Não gosto de portagens, não gosto de impostos, não gosto nem do IVA, nem do IRS, não gosto de pagar o que não devo, de ouvir o que não tenho de ouvir, de falar com quem não gosto, de engolir o que não mereço.
Não gosto de meninos pequeninos que se fazem homens, nem de homens que se comportam como meninos pequenos. Não gosto de pessoas que só querem o que não têm e quando têm o que querem, não sabem do que é que gostam.
Não gosto de duvidas nem de confusões, de meias palavras e indefinições. Não gosto de ouvir não sei, talvez, logo se vê, tem paciência e não gosto que me peçam desculpa.
Não gosto de atrasos, de promessas falhadas, de encontros desmarcados, de palavras vãs, de planos que não se põe em prática.
Não gosto de mulheres que não sabem gostar das outras mulheres, nem de mulheres que só gostam de mulheres, não gosto de homens que só gostam de homens, nem de misóginos que não sabem do que é que gostam.
Não gosto de gritos, nem de cenas, de gestos teatrais e frases dramáticas. Não gosto de ficar calada quando tenho coisas para dizer nem ter de adivinhar o que os outros não conseguem explicar.
Não gosto nem de praias sujas e águas turvas, de bairros da lata nem de condomínios de luxo. Não gosto de entradas em mármore e móveis lacados, de talheres mal lavados e de unhas encardidas. Não gosto de motas sem escape e motards sem nível, não gosto de descapotáveis encarnados nem de lenços farfalhudos a saltarem da lapela. Não gosto de blazers azuis-escuros e camisas as riscas, de nós de gravata desapertados, do dito pelo não dito e de tudo o que é mal feito.
Não gosto que passem á minha frente nas portas em nome da igualdade entre o homem e a mulher, que me tratem por tu sem me conhecerem e me peçam dinheiro só porque fingem ajudar-me a arrumar o carro.
Não gosto de concursos nem de Seats Ibizas que os concursos dão, não gosto do cabelo empastado do José Rodrigues dos Santos no Telejornal (embora goste dele), não gosto da TV Shop, das telenovelas mexicanas e de series dobradas, não gosto dos filmes do Silvester Stallone, não gosto de salas de teatro vazias, não gosto de música metal, e sobretudo, não gosto que me dêem música.
Não gosto de intrigas nem de histórias mal contadas, não gosto de cartas que se perdem antes de chegar ao destino, de livros que não chegam ao fim, de viagens que não se fazem. Não gosto de não poder acreditar nas outras pessoas, não gosto de voltar atrás, e ainda menos que voltem atrás comigo.
Não gosto de pessoas que pensam que sabem tudo e que falam com arrogância, não gosto de intelectuais que ganham a vida a escarnecer as pessoas e só perdoam os que idolatram. Não gosto de pessoas que fazem voz aflautada ao chefe e grossa á mulher-a-dias, que deixam roupa desarrumada e louça suja, que falam da sua vida privada ao primeiro desconhecido que encontram e que se escondem atrás de ideias feitas para julgar o que está bem e o que está mal.
Não gosto de pessoas calculistas e maquiavélicas, ambiciosas e individualistas que não sabem ver mais longe do que os seus interesses e o seu bem-estar.
Não gosto que me cortem a onda e me afastem de quem gosto, não gosto de perder tempo nem oportunidades.
Mas acima de tudo, não gosto de perder a alegria e a vontade de continuar a viver, a rir, a brincar, a dormir, a partilhar e a gostar do mundo e das pessoas.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

PENSAMENTO... (revoltado)

Acordo todas as manhãs com este zumbido e a certeza que não vais voltar. Cansada de me convencer que, apesar e acima do teu individualismo, estava a tal inevitabilidade a que nos submetemos e chamamos amor, pensei que, com todo o amor que sentia por ti, te iria suavizar e de alguma forma fazer parte do teu equilibrio, tornando-me subtilmemte indispensável.
Nunca pensei enganar-me tanto. mas só agora percebo que o teu amor por mim não foi uma inevitabilidade, mas uma escolha. Alguém que te chamou a atenção e que, um dia, decidiste que querias atravessar, com a intuição certeira de um animal selvagem que procura refúgio temporário, quando está cansado. Sei que não vinhas a fugir de nada, nem á procura de coisa nenhuma. Mas acho que, quando eras pequeno, te arrancaram uma parte de ti, e desde então ficaste incompleto e perdeste, quem sabe talvez para sempre, a capacidade de adormecer nos braços de alguém sem que penses no perigo de ficar na armadilha do carinho para todo o sempre.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

INSTANTES PERFEITOS

De que é feito o amor? De vontade, de tempo, de perfeição. De espera, de respeito, de paciência. De doçura, de proximidade, de generosidade. De sonho, de paixão e de alguma tristeza. Há pessoas que ficam muito tristes quando percebem que se vão apaixonar. E outras que ficam ainda mais tristes quando se apercebem de que não conseguem atingir esse estado exaltado e sublime que faz para os ponteiros do relógio, satura as cores e traz uma luz perfeita á existência.
Eu pensava que sabia o que era o amor. O amor puro, incondicional, intemporal e inabalável que resiste a tudo, ao frio, á solidão, ao vento e á chuva, ao tempo e ao modo, á ausência e á distância. Cada dia que vivi nesse estado de graça era um dia cheio, podia ser o derradeiro, porque nada contava além desse sentimento abrasador, invasor, arrebatador que tomava os membros e a alma, a cabeça, os olhos e o peito, as horas, minutos e segundos, que tomava conta da minha vida e de mim.
Não me interessava se o meu objecto amoroso, um rapaz afinal, igual a tantos outros com olhos de criança e andar elástico me amava ou me queria, tal era a dimensão do que por ele sentia. E, sem nunca desistir, habituei-me á ideia que o amor era amá-lo, mesmo na ausência, na tristeza, no vazio das minhas mãos que se davam uma á outra sem que uma terceira as agarrasse para me dizer
estás enganada, é preciso outra pessoa para construir o amor
Quando nos habituamos a dar, receber torna-se um exercício difícil, quase assustador. Quando vivemos numa elevação permanente, baixar á terra parece-nos torpe e digno. Quando somos náufragos dentro de nós mesmos, todas as praias são miragens e esquecemo-nos de procurar um porto de abrigo. E habituamo-nos a uma tristeza permanente que nos faz ver o mundo desfocado e que nos protege da luz que já fomos.
É muito difícil voltar a amar. Amar sem tempo, sem exigências, sem medo. Amar por amar, querer sem pensar, sonhar sem recear, deixar o barco partir outra vez. O barco balança, mas a ancora não sobe, as velas enrolam-se de recato e cansaço, o vento não sopra e muito pouco muda. Mas porque é impossível sobreviver no deserto ou navegar para sempre, há instantes de amor, momentos perfeitos em que sentimos outra vez o sangue a ferver, os olhos mudam de cor e as mãos voltam, por breves segundos a entrelaçar-se, quando alguém nos diz ao ouvido
estás enganada, pode ser isto amor
E pode, e deve e nós até queremos que seja, mas o coração não obedece a nada senão á sua própria vontade e o amor continua a ser um mistério que não sabemos como começa nem quando acaba. Amo alguém, mas agora vou aprendendo a amar a vida, a cor da lua quando enche, o tempo que passamos juntos, tu e eu, num sossego só nosso, feito de pequenos instantes perfeitos que se vão dissolvendo na espuma dos dias.

sábado, 5 de abril de 2008

...

A vida é tua, tens de ser tu a vivê-la, não podes deixar que ela passe por ti, tu é que passas por ela. E quando todas as laranjas cairem, apanha-as com cuidado, guarda-as num cesto e muda de profissão. O circo é para quem não tem casa nem país, não é vida para ninguem. Guarda as laranjas num cesto, leva-as para casa e faz um bolo de saudades para esquecer a mágoa. E nunca deixes de sonhar que, um dia, vais encontrar alguém mais próximo e mais generoso que te ensine a ser feliz, mesmo com todas as pedras que encontrarem no caminho. Larga as laranjas e muda de vida. A vida vai mudar contigo.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

...

Ás vezes gostava de apagar da memória o cheiro da tua carne e o peso do teu peito em cima do meu, esquecer os teus olhos que viajavam pelo meu corpo sempre á procura de mais prazer, das tuas mãos compridas que me agarravam as ancas e o cabelo. mas a memória do prazer é autonoma e traiçoeira, vem de tudo e do nada e o pior é que só serve para nos distrair da realidade, nos arrancar dos outros para depois nos devolver o coração mutilado pela saudade. Mas quando me lembro de ti, também guardo a lição de uma forma diferente de amor.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

ANDAR AO CONTRÁRIO

E ás vezes, sem saberes porquê, tudo se desfaz por entre os dedos e assistes atónica e impotente á perda irrecuperável do teu amor: ele desfaz-se em gritos, insultos e estalos, tudo se perde no ar que fica pesado como chumbo e, mergulhada no prostação do absurdo, percebes que está tudo perdido, que as palavras e os gestos te atraiçoaram para sempre, que preferes morrer a enfrentar a realidade por ti criada, alimentada pelos teus medos e dúvidas, percebes que te fodeste para sempre, que nunca mais poderás recuperar tudo o que construiste, os sonhos estatelaram-se como copos que atiraste á parede e se desfizeram em mil cacos e de repente vês a tua vida em infinitos fragmentos de vidro iguais a nada, piores que nada, porque o nada é branco e tem um principio e um sentido mas desaparece quando percebes o que te aconteceu e os vidros afinal ficam ali no chão, á espera de te apanharem num movimento menos prudente e então vais buscar uma vassoura daquelas pequenas que parecem de brincar e uma pá a condizer e tentas apanhar os fragmentos infinitos e varres com cuidado mas totalamente absorta da actividade que executas como um autónomo contrariada que de repente toma consciência de que o puseram a executar uma tarefa abaixo da sua expertie, ma mesmo asim varres tudo, sabendo que atrás da porta, ou junto ao rodapé, ou estranhamente projectado a mais de tr~es metros, há um que te vais cortar mesmo o pé e, por mais que não queiras, por mais que fujas, vais mesmo sofrer.
Ou então, depois da batida da porta que te ecoa no cerébro como uma bomba-relógio com a contagem ao contrário, vais mesmo ao armário e retiras de lá todos os copos, um a um atira-los contra a parede, o movimento do teu braço é como o de um atleta das olimpiadas a lançar o dardo, apetece-te furar o mundo em mil buracos, o efeito aplástico do vidro é admiravelmente acompanhado por um ruido estridente, um estertor de uma morte que não consegues realizar, a banda sonora perfeita para a tua alma, ou aquela merda que carregas no peito e que te alimenta ao mesmo tempo que te mata, toda partida, rebentada, desfeita em mil pedaços de memórias que não queres esquecer mas não podes lembrar e é então, quando o chão de madeira parece um tapete de faquir em fase embrionária que percebesque não és nenhum atleta, que não podes voltar atrás, rebobinar o filme e evitar a conversa, os insultos, os gritos, os gestos desmedidos e absurdos, os maus tratos de quem ama demais e não sabe viver de outra maneira e é então que te perguntas porquê.
E os dias passam, comendo a luz que te dói nos olhos e na alma e vêm as noites, e o tempo continua a perseguir-te com o vazio de um dia igual ao outro e ao outro e outro e tu só queres desistir, dormir, perder o juizo e a lucidez e voltar ao momento exactamente anterior á dor, ao vazio e á tristeza, mas é sempre tarde, é sempre demasiado tarde para voltar atrás.
Só o mundo é que anda ao contrário dos ponteiros do relógio.

...

a vida são portas condenadas
Portas que passamos, pensando que, ao as abrirmos, vamos descobrindo o mundo e arrumando o caos interno, mas afinal percebemos que á medida que os anos passam, elas se vão fechando uma a uma, nas nossas costas e na nossa cara, batendo com uma veemência esmagadora que nos deixa de braços estendidos ao longo do corpo e a perguntar em surdina porquê.
A vida são portas condenadas, primeiro fecha-se a porta da infância, dos bolinhos de lama para o lanche das bonecas, tiram-nos as rodinhas das bicicletas e dizem-nos
és capaz, tu já és capaz
A partir dai a vida estreita-se num arame cada vez mais fino e ténue e é então que vamos percebendo que viver não é mais do que precário equilibrio, uma travessia solitária pelo arame traiçoeiro que nos há-de levar a um lado qualquer que é sempre do outro lado, onde está tudo que nos convencem que queremos ou que simplesmente escolhemos como objectivo para alcançar uma coisa qualquer que gostamos de chamar tranquilidade.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

O CAMPONÊS E A RAPARIGA

Era uma vez um camponês de pensamentos simples e poucas posses que se apaixonou pela rapariga mais bonita da aldeia. Ela tinha tudo o que a ele lhe faltava: graça, inteligência, popularidade, brilho, mistério. Ela era bonita, ele igual a tantos outros. Ela era alegre e divertida, ele timido e metido consigo mesmo. Ela era fogosa e provocadora, ele mais parecia uma mosca morta. Ela tinha graça quando andava, ele parecia que tinha os sapatos pequenos para os pés. Ela brilhava, ele era fosco como uma lâmpada. Ela tinha a força do sol, ele a sombra da lua. Ela não gostava de ninguém e ele gostava dela.
Um dia, junto á fonte, declarou-lhe o seu amor e ela riu-se dele. Então ajoelhou-se aos seus pés e jurou-lhe amor eterno. Ela riu-se novamente e respondeu com escárnio e desprezo: amor eterno, isso não existe. Mas ele não desisitiu. Queria amá-la para sempre e estava disposto a honrar o seu amor por ela.
Então ela olhou para ele com mais atenção e pensou que até podia amar um dia aquele homem, tão igual a tantos outros, e lançou-lhe um desafio. Durante cem dias e cem noites ficarás debaixo da minha janela á minha espera. Faça chuva ou faça sol, caia neve ou trovoada, noite e dia, dia e noite. Cem dias e cem noites. Se aguentares tanto tempo, então é porque mereces o meu amor.
O camponês regressou a casa com o coração cheio de esperança. cem dias era um preço baixo a pagar para ter a sua amada. O tempo iria voar, tinha a certeza.
No dia seguinte, fez um farnel e foi para debaixo da janela dela. esperou que ela aparecesse e acenou-lhe quando a viu espreitar por entre as frestas das portadas. O mesmo aconteceu na segunda noite. E na terceira. E na quarta. E em todas as noites que se seguiram.
Todos os dias, a qualquer hora, lá estava ele, á espera de um sinal dela, para lhe mostrar que estav ali, de pedra e cal á espera de merecer o seu amor. Acabou o Verão. Chegou o frio. Depois a chuva. Depois a neve. E o camponês sempre perfilado como um soldado na parada, á espera que ela o espreitasse pelas portadas para lhe poder mostrar que estava ali, a cumprir o seu designio, a resgatar a sua promessa.
Nunca durante todos esses dias ela abriu a janela para o saudar. Nunca lhe abriu a porta e o convidou a entrar e descansar da sua vigilia. Nunca lhe ofereceu um sorriso, uma palavra de afecto, um instante de atenção.
Mas ele continuava lá, agora já cansado, enregelado pelo frio, ferido pela indiferença dela, desgastado pelo vento e pela chuva, faminto e triste, sentindo-se cada vez mais só...
Na nonagésima nona noite ele esperou mais uma vez por ela. E mais uma vez ela não apareceu. O camponês abanou a cabeça, sentou-se no passeio e chorou durante muito tempo. Tanto tempo que a noite passou e o dia começou a nascer.
Tantas horas de espera, tantos sonhos no seu coração, tanto amor para dar e afinal nada valera a pena. A rapariga continuava a ignorá-lo, a fazer troça do seu amor. Sentado no passeio, chorou e viu as suas lagrimas formarem um fio de água que ia ter ao rio, e este ai ter ao mar. Viu o seu amor diluir-se, sentiu que a sua paixão não era nada, comparada com outras paixões que moveram mundos, povos e montanhas. Era só mais um fio de água que corria para se juntar ao mar.
Foi então que o camponês percebeu. Percebeu que não era ele que não era digno do amor dela, ela é que não merecia o amor dele. Que tudo o que ele amava naquela rapariga era uma ilusão, não existia. Que o seu esforço só lhe tinha servido para aprender a conhecer-se e a aceitar-se melhor a si próprio. Era um homem livre.
E no dia seguinte, quando ela abriu a porta para se entregar a ele, rendida por tanto amor e paixão, ele tinha-se ido embora.